11/04/2006 -
Ignorados pelo Censo, brasileiros aderem a protesto
DE WASHINGTON
Se a manifestação de ontem foi também contra a discriminação dos imigrantes, os brasileiros tiveram um motivo a mais para fazer parte dela. Pela peculiaridade lingüística, são exceção num continente que praticamente só fala espanhol.
Também não se consideram "latinos" nem hispânicos -no último Censo local, poucos colocaram "x" em uma das duas opções, e não havia uma para "brasileiro", o que fez de "branco" a escolha da maioria.
Assim, oficialmente são menos de meio milhão, mas estima-se um número pelo menos três vezes maior. Na região de Washington, concentram-se em Silver Spring, no Estado vizinho de Maryland e a poucos minutos da capital do país. Trabalham como operários ou fazendo pequenos serviços. É o caso de Antônio Pereira, 26, marceneiro que chegou de Goiás há quatro anos. Ontem, ele organizou uma caravana de goianos para protestar. (SD)
Folha - Contra o quê?
Pereira - É preciso colocar um pouco de pressão para ver se eles mudam a lei ou se fazem alguma coisa para a gente. É muito difícil viver do jeito que a gente está vivendo aqui. Não é uma prisão, mas também não tem muito direito não. Queremos mostrar que de alguma forma temos importância, que estamos fazendo o trabalho pesado para eles.
Folha - Você é discriminado?
Pereira - Ouvi um ditado aqui: "A América é para todos, nem todos são para a América".
Milhares de imigrantes protestam nos EUA
Manifestação reúne 180 mil em Washington e é acompanhada por marchas em outras 60 cidades
Sérgio Dávila
DE WASHINGTON
"Si se puede." Sim, é possível. Ou "yes, you can", na tradução local. Washington ontem falou espanhol, pelo menos em seu tradicional palco de protestos, o Mall, o longo passeio que liga o Monumento a George Washington ao Capitólio, sede do legislativo americano. Ali se reuniram no final da tarde milhares de pessoas, 180 mil segundo os organizadores, numa cidade em que a população de latinos é estimada em 600 mil.
É a maior manifestação do tipo na história da capital e foi acompanhada por eventos semelhantes, embora de menor dimensão, em Nova York, Los Angeles e outras ultrapassando cem cidades. Instados por ONGs, os imigrantes responderam ao Dia Nacional de Ação pela Justiça do Imigrante, ou apenas "La Marcha".
"Si se puede", começou seu discurso o senador democrata de tradição liberal Ted Kennedy (Massachusetts), num espanhol carregado de sotaque mas vivamente aplaudido. Sua presença no palco era a consolidação de um paralelo que os manifestantes vêm tentando traçar desde o começo do movimento, em dezembro passado, e ao longo do último fim-de-semana: a idéia é fazer da luta pelos direitos dos imigrantes ilegais hoje o que a luta pelos direitos civis foi nos anos 60.
Assim, não foi coincidência o local escolhido nem as semelhanças apontadas pelo senador. "Como declarou o presidente Kennedy meio século atrás, somos uma nação de imigrantes", discursou, para aplauso das pessoas.
"Somos uma nação de imigrantes, sim, mas legais", rebateu à Folha Ira Mehlman, da organização conservadora FAIR, que luta contra a presença de ilegais no país. Com ele está parte da opinião pública -segundo pesquisa encomendada pelo jornal "The Washington Post" e pela rede de TV ABC, 75% acreditam que as autoridades não agem o suficiente para evitar a imigração ilegal.
Está em jogo o destino de pelo menos 11 milhões de pessoas, na maioria latino-americanos, na maioria mexicanos. Segundo o projeto de lei da ala conservadora republicana aprovado pela Câmara dos Representantes (deputados) em dezembro, todos devem ser deportados, e os que os empregam ou ajudam, sofrer punição. É prevista ainda uma cerca na fronteira mexicana.
Outras propostas mais brandas ganharam o apoio parcial do presidente George W. Bush. Segundo uma delas, os imigrantes que se legalizarem podem ficar no país, desde que paguem impostos, aprendam a língua e sigam as leis.
Bush disse ontem: "As pessoas deveriam estar aqui temporariamente. Se quiserem se tornar cidadãs, depois de uma série de etapas, entrarão na fila, como o resto; não à frente da fila, mas no final".
Os projetos foram discutidos na semana passada no Senado, sem acordo. A série de protestos foi convocada para pressionar a sessão de volta do recesso de Páscoa.
Por que os EUA não acertam quando o tema é imigração
Michele Wucker
ESPECIAL PARA A FOLHA
Na última semana, enquanto discutiam um polêmico projeto de reforma das leis de imigração, vários senadores americanos se sentiram obrigados a lembrar que também eles eram descendentes de imigrantes. Ao mesmo tempo em que uma minoria pede em voz alta a construção de cercas nas fronteiras, ai de qualquer político que deixar de render homenagem à história dos EUA como país feito de imigrantes. Pois essa discussão se baseia mais em discursos retóricos do que em fatos.
Emoções que oscilam loucamente são a razão pela qual o Senado deixou de consumar um acordo que foi anunciado com euforia, apenas para desabar no dia seguinte. Isso não é surpresa. A história dos EUA com seus imigrantes já envolveu políticas que freqüentemente passam de um extremo a outro e têm resultados opostos aos pretendidos.
Após a grande onda de imigração ocorrida entre 1880 e 1920, o Congresso reduziu as cotas de imigração, provocando uma queda drástica no fluxo de imigrantes. Em 1965, uma nova reforma escancarou as portas do país a tal ponto que o aumento dramático na imigração ameaçou recriar a crise demográfica que provocara o fechamento das portas em 1920.
Em 1986, a Lei de Reforma e Controle da Imigração procurou enfrentar o novo aumento da população, oferecendo uma anistia a quase 3 milhões de imigrantes e supostamente impondo penalidades às empresas que empregassem trabalhadores ilegais, "cientes de que o estavam fazendo". Mas a lei foi aprovada apenas porque incluía brechas.
O resultado foi uma nova população de 11 milhões de imigrantes sem documentos, além de um clamor antiimigrante que supera qualquer coisa ouvida em quase um século. Culpando os imigrantes por tudo, publicações foram criadas com o único objetivo de defender o fechamento das portas do país. Livros que avisavam que os imigrantes ameaçavam destruir a sociedade americana se tornaram best-sellers. E políticos aproveitaram para promover leis mesquinhas e pouco práticas.
Em dezembro a Câmara dos Deputados aprovou uma lei que focaliza só a aplicação da política de imigração e que teria garantido o financiamento de uma barreira de 1.116 quilômetros na fronteira. A nova lei criminalizaria não apenas os imigrantes não autorizados, mas também aqueles que lhes oferecem ajuda humanitária.
Ao tentar reparar o sistema de imigração desconjuntado, o acordo no Senado manteve alguns dos dispositivos duros da lei, como o que determina que ser imigrante ilegal constitui ofensa não só cível, mas criminal. Mas, de maneira sábia, também teria criado um caminho para a legalização e eventual aquisição da cidadania por imigrantes ilegais que vivem nos EUA há pelo menos cinco anos e que obedecem a certas restrições.
No entanto, assim que um grupo de senadores de ambos os partidos anunciou o acordo, as discordâncias começaram. Alguns senadores se posicionaram contra qualquer proposta que envolva algum tipo de "anistia", mesmo a legalização "conquistada". Nesse ambiente envenenado, muitos políticos temem ser rotulados de "brandos em relação à imigração"- mesmo que isso signifique que sua adoção de uma postura de linha dura crie mais problemas do que os que resolve.
Os EUA não param de errar com a imigração porque adotam políticas baseadas na emoção, que nos deixam cegos aos nossos próprios interesses. Os políticos e o público se deixam levar por princípios elevados, mesmo quando as políticas que traçamos em nome do patriotismo e da nação americana, quando levadas a extremos, enfraquecem os próprios princípios. Se os EUA quiserem acertar com a imigração, precisam trazer a discussão para fora do âmbito dos extremistas e buscar soluções práticas. Foi isso o que o Senado procurou fazer na semana passada. Embora a história não nos aponte uma perspectiva encorajadora, só nos resta esperar que os pragmáticos prevaleçam sobre os esquentados.
Michele Wucker, do Instituto de Políticas Mundiais, em Nova York, é autora de "Lockout: Why America Keeps Getting Immigration Wrong When Our Prosperity Depends on Getting It Right" (lockout: por que a América não pára de errar com a imigração, quando nossa prosperidade depende do acerto), que será lançado no mês que vem nos EUA.
Tradução de Clara Allain
Fonte: Folha de S.Paulo
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