21/07/2006 -
Os domésticos e a reforma trabalhista
Armando Castelar Pinheiro
Faz bem o presidente Lula em vetar a criação do FGTS para trabalhadores domésticos. Mas o veto não encerrou essa discussão: o governo pretende enviar ao Congresso um projeto alternativo sobre o tema; se não o fizer, outros o farão. Por isso, e pela mobilização social, a favor e contra, que essa decisão gerou, é importante entender melhor os seus fundamentos. Uma consulta às colunas de opinião e às cartas de leitores revela que há quatro questões principais em discussão.
Primeiro, se o trabalho doméstico é equiparável ao feito para as empresas, o governo e o terceiro setor. Quem defende o veto diz que não, argumentando que as famílias não geram lucro. Isso faz pouco sentido: há várias entidades privadas que não visam o lucro e nem por isso seus funcionários deixam de receber o FGTS. A diferença relevante neste caso é de escala, tanto em relação ao custo burocrático de cumprir as regras trabalhistas como de fiscalizar se isso ocorre: essa é uma das razões porque há mais informalidade entre as pequenas do que nas grandes empresas.
Segundo, se essa não seria uma boa forma dos ricos (a família empregadora) transferirem renda para os pobres (o trabalhador doméstico). Alguns lembram que o FGTS sobre o salário corresponderia a uma parcela pequena da renda de várias famílias. É verdade, assim como o é o fato de que há famílias que pagam a quem trabalha em suas residências mais que o salário de mercado, algo que deveria ser mais estimulado. Mas o trabalho doméstico, como outros, é uma relação de mercado, e não cabe à lei sobrepor-lhe um programa obrigatório de filantropia. Menos ainda que o Estado arque com a conta, pagando diretamente o FGTS, ou se deduzindo essa despesa do imposto de renda, como sugerem alguns.
Nossas regulações trabalhistas são inconsistentes perante a realidade de mercado: geram a exclusão da maioria a fim de proteger demais uma minoria
Terceiro, se a legislação vetada iria aumentar o desemprego. Claro que sim, pois encareceria a contratação do trabalhador doméstico - a multa de 40% em caso de demissão, além disso, também incentivaria a rotatividade. Ainda que não se possa precisar o tamanho desse efeito, é claro que em certos casos esse custo adicional tornaria mais interessante usar máquinas - de lavar pratos, por exemplo - e recorrer ao trabalho de membros da família do que contratar alguém para fazer o trabalho doméstico. Finalmente, e relacionada a esta última, há a questão da informalidade, que também iria, naturalmente, aumentar. Os que negam que isso vá ocorrer em geral incorrem no erro de equiparar o FGTS às férias, ao descanso semanal remunerado e ao décimo terceiro salário, direitos estendidos em 1988 aos domésticos. Estes benefícios vão diretamente para o "bolso" do trabalhador; o FGTS não: vai para uma conta pessimamente remunerada e quase sem liquidez. E isso faz muita diferença.
A teoria e a evidência empírica mostram que as regulações trabalhistas que funcionam bem são as compatíveis com a realidade do mercado e que criam benefícios pelos quais os trabalhadores estão dispostos a pagar. Tome-se o exemplo das férias: a maioria dos trabalhadores prefere receber um salário menor a não poder folgar durante um período do ano. Em países com legislação trabalhista mais flexível, o tamanho desse período, se duas semanas, um mês, ou mais, é negociado junto com o valor do salário. Há também trabalhadores que preferem vender parte das férias e aqueles que exercem outras atividades remuneradas no período de descanso do emprego principal. A função da legislação sobre férias não é distribuir renda, mas economizar nos custos de transação, dispensando trabalhadores e empresas de negociar caso a caso essa cláusula contratual, o que encareceria o custo da mão-de-obra sem gerar qualquer benefício para as partes. Raciocínio parecido se aplica ao décimo terceiro salário: trata-se apenas de uma forma diferente de distribuir a remuneração anual do trabalhador.
Bem diferente é o caso do FGTS, da contribuição para a Previdência Social e, principalmente, de encargos trabalhistas como o salário-educação e as contribuições para o Incra, o Sistema S e o Sebrae. Se tiverem a opção, certamente os trabalhadores preferirão receber diretamente do empregador o valor desses encargos: no caso do FGTS e da Previdência, por preferirem recursos líquidos e que podem ser mais bem remunerados no mercado financeiro; no das demais contribuições, pois só indireta e parcialmente são beneficiados pelos serviços que elas financiam. O mesmo não ocorreria, na grande maioria dos casos, com as férias e o descanso semanal remunerado, por exemplo.
Obviamente, não se observa esse problema apenas com os domésticos, mas também com os demais trabalhadores. Por isso, a isonomia entre eles não deveria ser buscada com a extensão do FGTS aos primeiros, mas com a completa extinção deste encargo, inclusive a multa de 40% em caso de demissão. Isso poderia ser feito gradualmente, incorporando o FGTS aos salários, o que beneficiaria os trabalhadores sem penalizar as empresas. O mesmo vale para os demais encargos citados acima, com a exceção da contribuição previdenciária, cuja reforma exige mudanças mais amplas. Aqueles trabalhadores que assim desejarem podem poupar parte do salário, para a eventualidade de uma demissão, com melhor remuneração que a do FGTS.
O Brasil se destaca por ter custos de contratação (encargos) e demissão (multa) de trabalhadores acima da mediana internacional, além de sua legislação dar pouca flexibilidade à contratação. Ganham com isso os trabalhadores incluídos, perdem os excluídos: aqueles do setor informal e os simplesmente desempregados, situação que afeta especialmente os mais jovens e menos instruídos. Considerando que 10% dos trabalhadores estão desempregados (até mais, considerando-se os que já desistiram de procurar emprego) e que, dos restantes, metade está na informalidade, é fácil ver que nossas regulações trabalhistas são inconsistentes com a realidade de mercado: geram a exclusão da maioria para proteger demais uma minoria. O Brasil não precisa agravar ainda mais esse problema, mas sim de uma reforma que flexibilize a contratação de trabalhadores e elimine encargos que, em vez de benefícios, são formas mascaradas de tributação.
Fonte: Valor
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