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28/08/2006 -

Impasse trabalhista

Mariana Mazza

Correio Braziliense

A responsabilidade sobre as dívidas com os empregados, deixadas pelas empresas que entram em recuperação Judicial e são vendidas, como a Varig, é uma das brechas mal resolvidas da nova lei de falências

Hoje, a Varig deverá iniciar a liberação das guias para o saque do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) e do seguro-desemprego aos 5,5 mil funcionários demitidos durante a reestruturação da companhia. O acordo foi fechado ao longo da semana passada, depois de uma série de encontros entre os trabalhadores e o empresário Lap Chan, representante do fundo norte-americano Matlin Patterson que hoje controla a VarigLog e, indiretamente, a Varig. Chegar a uma saída conciliatória tornou-se vital para a companhia nos últimos meses. Tudo porque o maior temor de Chan, revelado durante as reuniões, continua sendo a sucessão das dívidas deixadas na "antiga Varig". Em especial, a trabalhista.

O acordo sobre o FGTS e o seguro-desemprego, no entanto, não evitará a continuidade da batalha judicial que pode colocar em risco tanto o futuro da aérea quanto dos seus ex-funcionários. O dilema jurídico sobre a sucessão do passivo trabalhista já é visto por especialistas como a principal falha do novo sistema de recuperação de empresas em dificuldade, a nova lei de falências. A grande questão é se os direitos dos trabalhadores devem ou não ser considerados no momento de recuperação de uma companhia. A resposta unânime de juízes e advogados trabalhistas ouvidos pelo Correio é que sim.

Apesar da constatação de que a sucessão é inevitável, os próprios analistas acreditam que a decisão definitiva para o impasse irá demorar. Na última sexta-feira, a VarigLog sinalizou com um novo acordo coletivo para tentar conciliar o pagamento dos salários atrasados e demais benefícios com a capacidade de caixa da empresa. Porém, nem mesmo o acerto colocará um ponto final na ação civil movida pelo Ministério Público do Trabalho do Rio de Janeiro, que ainda está em primeira instância.

O tamanho total da dívida protestada é uma incógnita. Como a empresa permanece em recuperação judicial (o que a impede de divulgar balanços financeiros) não há números exatos sobre os passivos no momento atual. Em meados de 2005, o montante devido aos trabalhadores, declarado pela aérea, era de R$ 225 milhões. Passados mais de um ano do início do processo de recuperação e com o contínuo atraso dos pagamentos, os sindicatos do setor estimam que a dívida chegue, hoje, a R$ 1 bilhão.

Responsabilidade

O impasse mais grave é a responsabilização do novo administrador, a VarigLog, pelo pagamento da dívida. Para comprar a Varig em leilão, a empresa teve a garantia da 8ª Vara de Justiça Empresarial do Rio de Janeiro de que nenhum passivo seria repassado da antiga aérea para a nova. Nem mesmo o trabalhista.

No entanto, casos anteriores que passaram pela Justiça do Trabalho não deixam dúvidas de que o passivo com funcionários não pode ficar para trás. A interpretação de juízes é que esse tipo de dívida é transmitida aos novos administradores quando a empresa é vendida. Assim foi com o Itaú em 2000, quando adquiriu o controle do Banco do Estado do Rio de Janeiro (Banerj). Apesar da resistência, a instituição foi obrigada a arcar com o passivo, mesmo argumentando que a razão social das empresas era diferente e que não havia responsabilidade sobre a dívida. O mesmo aconteceu com a aquisição de parte da Rede Ferroviária Federal (RFFSA) pela Ferrovia Centro-Atlântica (FCA), em 1996.

O caso Varig não deve ser diferente, crêem advogados trabalhistas. Apesar da legislação de falência ter mudado em 2005, as regras da nova lei não são claras sobre o direito adquirido pelos funcionários da empresa em recuperação. Além disso, a existência de artigos específicos na Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) sobre a sucessão anularia qualquer interpretação contrária que a própria Justiça fizer em cima da generalidade da Lei de Falências. "Quando você tem regras gerais e específicas, prevalecem as específicas. Como a CLT é a legislação específica para essas questões, a sucessão deve prevalecer", acredita Luís Inácio Barbosa Carvalho, advogado trabalhista há 15 anos.

O ex-ministro do Trabalho Almir Pazzianotto também não vê maneira de manter o passivo congelado na antiga empresa. "Pela CLT, a mudança da propriedade não afeta os direitos adquiridos pelos trabalhadores", relembra. Porém, o jurista alerta que a indefinição da Lei de Falência, que não revoga os dispositivos anteriores presentes nas leis trabalhistas, é um erro grave no mecanismo de salvamento das companhias. "Se a empresa nova nascer contaminada pelos problemas da antiga, de nada adiantou a nova lei. Ela já nasce inviabilizada", ressalta Pazzianotto. Como a questão não foi resolvida durante a construção da lei de falências, restará aos funcionários aguardar uma decisão da Justiça nas alçadas superiores, provavelmente no Superior Tribunal de Justiça (STJ).

 

Drama dos funcionários

Sem perspectivas de receber os quase cinco salários atrasados, nem os benefícios definidos por lei para os demitidos, os funcionários mandados embora pela Varig vivem dias de agonia. Em Brasília, aproximadamente 300 pessoas perderam seus empregos, muitas com quase 30 anos na empresa. A luta agora é para sobreviver, apesar da falta de dinheiro e da pequena perspectiva de conseguir colocação na mesma carreira. Embora o setor esteja em franca expansão, as vagas criadas não têm sido suficientes para absorver os 5,5 mil demitidos pela Varig em todo o Brasil.

Enquanto esperam por um desfecho das negociações com a VarigLog, nova controladora da companhia, e do processo trabalhista movido no Rio de Janeiro, os funcionários têm trocado informações sobre o caso e encontrado seus próprios meios de amenizar a dura realidade de dívidas e abandono. No Orkut maior rede de relacionamentos da internet no Brasil existem centenas de comunidades mantidas por funcionários, onde debatem sobre a situação da aérea. Os grupos servem basicamente para transpor o mais forte obstáculo que tem se erguido para quem está fora da empresa: a falta de informação.

Muitos trabalhadores das equipes de terra (aeroviários) não receberam baixa das suas carteiras de trabalho, estando oficialmente ainda ligados à empresa. "A Varig nos tratou como pessoas descartáveis. Até hoje não sabemos qual o critério para a escolha dos demitidos e continuamos sem saber oficialmente o que está acontecendo. Muito do que sabemos é pela mídia", desabafa Glenda Azevedo Holanda, 24 anos, cinco passados na Varig. Inconformada com a falta de envolvimento da companhia na solução do impasse, Glenda move, por conta própria, uma ação na Justiça trabalhista. Pede R$ 80 mil em salários atrasados, benefícios não pagos e indenização por assédio moral. A primeira audiência de conciliação, realizada na quinta-feira passada, não gerou resultado por conta do acordo anunciado pela Varig com os sindicatos para a liberação do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) e seguro-desemprego.

Mesmo com o nome lançado em sistemas de controle de crédito, a aeroviária diz que sua situação ainda é melhor do que a de muitos colegas. É o caso de João (nome fictício) que após se dedicar à companhia por cinco anos se vê em uma das mais delicadas situações da sua vida. Com a mulher grávida de cinco meses, o ex-funcionário não sabe de onde irá tirar dinheiro para pagar as contas que se acumulam. "Até hoje não comprei uma meia para o meu filho que vai chegar", confessa João, que também tenta na Justiça conseguir o pagamento do que a Varig lhe deve.

Além dos problemas financeiros, a maior mágoa dos ex-funcionários tem sido o tratamento dado pela companhia a quem sempre apoiou a sua recuperação. O que todos trazem em comum é o sentimento de abandono. Desde que os cancelamentos de vôos começaram, há cerca de dois meses, os trabalhadores se mantiveram firmes no atendimento aos clientes. "A gente dançava conforme a música", resume Glenda. Enquanto tentavam resolver seus problemas de endosso de passagens, poucos passageiros estavam conscientes de que aquelas pessoas que estavam do outro lado do balcão viviam situação muitas vezes pior. "A Varig só funcionou nestes últimos três meses porque os funcionários estavam lá, trabalhando como formiguinhas", relembra João.

Hoje, eles têm dúvidas se a companhia é capaz de se reerguer. A Varig tem mantido os demitidos em stand by, com a promessa de que haverá recontratações em breve. Os uniformes ainda estão nos armários esperando uma reconvocação ou um novo emprego. Fernando Carvalho Benevides, 28 anos, já decidiu que, para a Varig, ele não volta. "A companhia não olhou na nossa cara. Eu não penso em voltar. Agora quero estudar para outro ramo, holetaria talvez", afirma.

Fonte: Correio Braziliense