03/09/2006 -
Vidas amargas
Canaviais da região, que alimentam um dos setores econômicos mais rentáveis, escondem feridas como maus-tratos ao trabalhador rural
Karla Konda/Agência BOM DIA
Cortadores de cana-de-açúcar ouvidos pela reportagem do BOM DIA que aceitam trabalhar por salários irregulares
Um dos setores que alavancam a economia regional, a agroindústria canavieira esconde feridas na camada mais baixa da sua "linha de produção": os maus-tratos a que são submetidos os cortadores de cana.
As agressões aos trabalhadores ocorrem há anos sob variadas formas: jornada desumana, alojamentos precários, falta de higiene.
Um grupo de 80 cortadores foi demitido em Palmares Paulista por protestar contra a falta de equipamentos de segurança e por exigir salários acima dos R$ 200 que recebiam por mês. Todos são migrantes da Bahia. O presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Catanduva, Walter Hipólito, estima que haja 12 mil migrantes nordestinos no corte de cana na microrregião.
O grupo é alvo fácil dos empreiteiros conhecidos como "gatos". Passando-se por fornecedor de cana, a reportagem negociou trabalho para todos eles. As condições negociadas são ilegais: sem carteira de trabalho assinada e a R$ 0,07 o metro de cana cortada, abaixo dos R$ 0,10 estabelecidos.
O negócio foi fechado no primeiro bar procurado em Palmares. "Eles estão à procura de emprego", diz o "gato", que se identifica como Marivaldo. Há cerca de outros 20 em Palmares e cinco em Ariranha, maiores focos do problema, segundo o presidente do Sindicato dos Produtores Rurais de Ariranha, José Carlos Bento. Integrante do Ministério Público do Trabalho em Campinas, Aparício Quirino Salomão reconhece a gravidade do problema. " Agora, o problema se concentra nos fornecedores de cana."
Os cortadores demitidos em Palmares são facilmente aliciados para trabalhos em condições ilegais num setor que faturou R$ 1,64 bilhão em 2005. Zeferino Neto, 25 anos, de Iaiá (BA), aceita cortar cana a R$ 0,07 . "Preciso comer", justifica.
Palmares sofre com migração nordestina
Palmares Paulista é a metáfora de uma ilha: um grande alojamento de cortadores de cana cercado de usinas por todos os lados. Enquanto Palmares fica sobrecarregada pela migração maciça de nordestinos, que todo o ano fazem o município inchar de 3,2 mil para 9,2 mil habitantes, as cidades vizinhas se beneficiam do ICMS gerado pelas usinas instaladas em seu território.
"Eles ficam com o filé e nós com o osso", afirma o chefe-de-gabinete da Prefeitura de Palmares, Benedito Santana.
Segundo ele, todos os anos as escolas e o posto de saúde da cidade ficam sobrecarregados pelos migrantes.
Nem por isso os repasses dos governos federal e estadual aumentam: a renda anual da cidade não passa de R$ 6 milhões. Santana exemplifica a disparidade de renda com o repasse de ICMS: enquanto Palmares recebe R$ 121 mil por mês, Ariranha, onde está a usina Catanduva, fica com R$ 731 mil. Ele reconhece condição precária do trabalhador.
Cortadores de cana viajam 1,7 mil quilômetros em ônibus clandestino
Não bastassem as condições degradantes de trabalho, todo o início da safra da cana, em fevereiro, os migrantes nordestinos "sacolejam" durante 28 horas da Bahia até a microrregião de Catanduva em ônibus clandestinos.
O movimento de trabalhadores da Bahia a Palmares é intenso. Os ônibus, veículos com mais de 20 anos de uso sem autorização da ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres), viajam de Palmares até a Bahia a cada oito dias.
Nos mais de 1,7 mil quilômetros de viagem, os cortadores trocam três vezes de ônibus nenhum deles tem banheiro. A passagem custa R$ 110 por pessoa. Muitos pagam a viagem com o primeiro salário: por isso, já chegam à região endividados, segundo o presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Catanduva, Walter Hipólito.
Os veículos viajam sempre lotados, principalmente no início e no fim da safra, em fevereiro e dezembro, respectivamente. Alguns viajam no colo de outros passageiros. Segundo o baiano Zeferino Neto, as fiscalizações da polícia são dribladas com propina: R$ 100 em média.
Somos animais em curral
Quase todos os cerca de 6 mil migrantes nordestinos em Palmares Paulista residem em alojamentos precários espalhados pela cidade. Um deles abriga nove dos 80 cortadores de cana demitidos há duas semanas.
A casa se resume a quatro cômodos: dois quartos, cozinha e banheiro. O aluguel mensal é de R$ 200. As paredes do banheiro estão impregnadas de lodo, que deixam um cheiro forte de mofo. O dono do imóvel cedeu quatro beliches, uma geladeira e um fogão, todos em condições precárias de uso. "A gente vive como animal no curral", diz Zeferino Neto, 25 anos.
Cidade vive apartheid
A presença maciça dos migrantes nordestinos criou uma espécie de "apartheid" em Palmares Paulista: os 3,2 mil habitantes da cidade não se misturam com os 6 mil baianos que passam dez meses do ano na cidade trabalhando no corte da cana.
Exemplo da discriminação ocorre no fim de semana, especialmente aos domingos, quando a praça da Igreja Matriz de Palmares é tomada pelos jovens "nativos", sem a presença de um único nordestino.
Esses ficam a aproximadamente três quarteirões de distância, na parte alta da cidade, onde há uma casa de shows e vários bares.
Tragédia social
Migração
Todos os anos, de fevereiro a dezembro, a microrregião de Catanduva recebe cerca de 12 mil cortadores de cana vindos do Nordeste. Cerca de 70% deles são baianos, concentrados em Palmares Paulista, seguidos de paraibanos, que se concentram em Novo Horizonte
Trabalho exaustivo
Quase sempre os trabalhadores são submetidos a condições desumanas de trabalho: a jornada vai das 6h às 17h, com duas pausas.
Mortes
Com o sol forte e a baixa umidade do ar, são comuns cãibras, sangramentos pelo nariz e desmaios. Às vezes, o quadro piora, e o cortador morre no meio do canavial. Neste ano, foram 14 mortes em todo o Estado, a última delas em Jaborandi, próxima de Bebedouro
Gatos
Outro risco ao cortador é a presença dos empreiteiros conhecidos como "gatos", que os contratam a baixos salários e sem carteira assinada
Fonte: Pastoral do Migrante
Fonte: Bom Dia
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